CLEONICE BERARDINELLI (28/08/1916-31/01/2023)

"CLARA EM SUA GERAÇÃO COMO A ESTRELA DA MANHÃ"

Recebemos, ontem à noite, a triste notícia do falecimento da Profa. Dra. Cleonice Berardinelli, ou, simplesmente, Dona Cléo, como ela gostava tanto de ser chamada. Sua vida foi dedicada ao ensino e à pesquisa da literatura portuguesa, sendo uma leitora e estudiosa atenta, cuidadosa e meticulosa de tanto(a)s autore(a)s. Dos cancioneiros medievais aos contemporâneos, podemos relembrar Bocage, Herculano, Garrett, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Antero de Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Gil Vicente, José Régio, Mário de Sá-Carneiro, Maria Judite de Carvalho, Hélder Macedo, dentre tanto(a)s outro(a)s. Mas, não há como negar que dois grandes nomes que sempre estiveram na frente destes foram Fernando Pessoa e Camões.

Aliás, sobre o poeta de Orpheu, Dona Cléo dedicou-se com um afinco singular, produzindo ensaios, artigos, antologias e edições críticas primorosas. É de sua autoria a segunda tese sobre Fernando Pessoa no mundo: Poesia e poética de Fernando Pessoa, de 1958, defendida brilhantemente na Faculdade Nacional de Filosofia, da então Universidade do Brasil, com a qual se tornou Livre Docente. E muito do que produziu sobre o poeta português pode ser encontrado, ainda, na obra Fernando Pessoa, outra vez te revejo (Lacerda Editores, Cátedra Jorge de Sena, 2004). É sua também a belíssima edição do volume II da Edição Crítica de Fernando Pessoa, com os Poemas de Álvaro de Campos (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990), resultado de sua participação na Equipa Pessoa, coordenada pelo Prof. Dr. Ivo Castro.

Sobre o autor de Os Lusíadas, são inúmeros os seus estudos. A sua edição dos Sonetos (1980) e a recolha de ensaios, intitulada Estudos Camonianos (1973, com uma nova edição, revista e ampliada, de 2000, sob a chancela da Editora Nova Fronteira), ainda hoje, são referências incontornáveis de investigação e de trabalho sérios e paradigmáticos em todos os sentidos.

Como professora dos cursos de graduação e pós-graduação em diferentes IES no Brasil e no exterior, foi responsável pela formação de uma miríade de professores das mais diferentes gerações. Numa época em que a crítica brasileira pouco falava do(a)s escritore(a)s portuguese(a)s, orientou diversas dissertações de mestrado e teses de doutorados, que constituem hoje a fortuna crítica de vário(a)s autore(a)s. Dentre estes, podemos mencionar: Agustina Bessa-Luís, Almeida Faria, Almeida Garrett, Alves Redol, Augusto Abelaira, Camilo Castelo Branco, Carlos de Oliveira, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Fiama Hasse Paes Brandão, Gastão Cruz, Jorge de Sena, José Cardoso Pires, José Saramago, Luíza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andressen e Vergílio Ferreira, dentre outro(a)s.

Tive a felicidade de ser seu aluno em três oportunidades no mestrado e no doutorado na UFRJ. Com ela, li Eça de Queirós, Luís de Camões e Fernando Pessoa. Dona de uma memória e uma vivacidade impressionantes, lia e recitava com uma paixão sedutora os textos e motivava que nós também amassemos o nosso objeto de estudo e de ensino. Além dela, tive a chance de poder estudar com os seus "filhos acadêmicos" na UFRJ, ora em disciplinas obrigatórias, ora em optativas (e foram muitas!). Fui aluno de quase todo(a)s ele(a)s e o que sou hoje como professor, pesquisador e ser humano muito deve aos mestre(a)s que me formaram.

Imortal da Academia Brasileira de Letras, eleita em 2009, Dona Cléo ocupou a cadeira 8, cujo patrono é Cláudio Manuel da Costa e o fundador o poeta Alberto de Oliveira. Foram várias condecorações e premiações pela sua atuação incansável como docente e investigadora ao longo de quase um século de dedicação ao ensino da literatura portuguesa no Brasil. Não à toa, esteve à frente do I Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa, ocorrido em 1966, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), ao lado de outros membros fundadores da ABRAPLIP: Antônio Soares Amora, Carlos d'Alge, Hélio Simões, Jordão Emerenciano, Leodegário Azevedo Filho, Massaud Moisés, Naief Sáfady, Segismundo Spina e Thiers Martins Moreira. Também foi sua a iniciativa de lutar de forma incansável e implacável contra a tentativa de retirada da literatura portuguesa do currículo de formação dos cursos de graduação na UFRJ. Na sessão inaugural do Seminário Permanente de Estudos Portugueses (SEPESP/UFRJ), em 25 de setembro de 1984 (data que coincidia com os seus 40 anos de ensino no magistério superior), a Profa. Cleonice Berardinelli teceu um discurso caloroso e assertivo sobre a permanência da disciplina na base curricular dos alunos de Letras, além da firme defesa contra o fechamento da própria Faculdade.

Relembro, aqui, um pequeno trecho:

O banimento da Literatura Portuguesa – tão drástico no Projeto inicial, abrandado na atual Resolução, sob a pressão nacional – é por nós vivamente repudiado.

Repudiamos igualmente o provável fechamento das Faculdades de Letras, centros de estudos, pesquisas e ensino de linguas e literaturas estrangeiras que significam meios de possibilitar uma menor dependência da tecnologia importada. Fechar essas agências culturais é limitar aqueles estudos ao diletantismo ou à formação de funcionários para serviço de companhias estrangeiras. Num momento em que se tenta reencontrar o pacto democrático neste País, seria de inestimável prejuízo histórico, econômico, politico e social, concretizar as funestas propostas da Resolução no. 638/84, ainda mais funestas porque emanadas de um colegiado que é depositário da responsabilidade de "aconselhar" sobre os caminhos da cultura no Brasil.

A Resolução aprovada em plenário, pelo CFE, na sala Barreto Filho, dia 14.09.84, visa a acabar com as Faculdades de Letras, e com isso não podemos concordar.

Meus amigos: a veemência do protesto que agora faço em nome dos professores de Letras da UFRJ, utilizando, em grande parte, um texto que redigi e foi aprovado pela nossa comunidade – dar-lhes-á, talvez, a impressão de que esqueci ou releguei a posição inferior a causa primeira do nosso encontro: a instalação do Seminário Permanente de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da UFRJ. Não é verdade. Nosso Seminário nasceu dentro desta Faculdade, planejado por professores seus, que nela ensinam Literatura Portuguesa. Se lhe cortarem o cordão umbilical que o prende a ela, talvez sobreviva, mas será outro, não o mesmo. Defender-lhe a matriz é proteger-lhe a existência, a permanência. E voltam-me à mente os versos de João Cabral, até mais pertinentes, pois que falamos de um menino que acaba de nascer, ainda "franzino", mas que já "tem a marca de homem / marca de humana oficina" e que, neste momento que vivemos, "É tão belo sim / numa sala negativa"
(Boletim do SEPESP, v. 2, 1988, p. 20-21).

Seu olhar jamais se desvencilhou da literatura. E como professora e estudiosa desta, não mediu esforços para divulgar autore(a)s e obras nos mais diferentes espaços e materialidades da literatura. Um dos seus mais conhecidos trabalhos foi ao lado da cantora Maria Bethania, com quem gravou a leitura dos poemas de Fernando Pessoa. Sob as lentes sensíveis e brilhantes do cineasta brasileiro Márcio Debellian, o resultado pode ser visto no filme "O vento lá fora" (sobre o qual também tive a oportunidade de escrever uma pequena resenha: https://livreopiniao.com/2015/01/07/duas-divas-e-um-poeta-sobre-o-vento-la-fora-cleonice-berardinelli-maria-bethania-e-a-poesia-de-fernando-pessoa/).

Apesar de toda a sua extensa bagagem, Dona Cléo tinha uma característica encantadora. Gostava sempre de iniciar a sua fala sobre a sua trajetória como aluna. Sempre destacava o papel importante que dois dos seus mestres tiveram na sua formação. Quem não se lembra da belíssima e emocionante conferência de abertura no XX Congresso Internacional da ABRAPLIP, no Teatro da UFF (Niterói, RJ), em 2005, quando começou falando de forma emocionada dos professores Thiers Martins Moreira e Fidelino de Figueiredo?

Esse mesmo carinho pôde ser experimentado por quem teve a oportunidade de ir e presenciar a abertura do Colóquio Internacional "Há cem anos, Orpheu canta para Cleonice", ocorrida no Consulado de Portugal no Rio de Janeiro, em 2015, organizado pela Cátedra Jorge de Sena da UFRJ. Nessa ocasião, celebrava-se o centenário da geração de Orpheu e, em conjunto, o aniversário de uma de suas mais célebres leitoras. Com a presença de professore(a)s, pesquisadore(a)s, aluno(a)s, amigo(a)s e ensaístas de diversas partes do mundo, Dona Cléo esbanjava alegria, bom humor, simpatia, gratidão e generosidade.

Desse dia, em específico, recordo-me de ter me debruçado perto dela e perguntado como ela estava e se lembrava de mim. Na mesma hora, esboçou um sorriso e respondeu: "É claro, eu estou quase centenária, mas a minha cabeça está ótima!". Rimos e muito. Mas, para provar que não havia se esquecido daquele aluno franzino, ela olhou muito séria e perguntou: "Como está o piano?". Eu respondi que havia desistido de continuar meu trabalho como pianista correpetidor, porque o tempo estava todo tomado pelo ensino da literatura na UFSCar. Não satisfeita, voltou a me indagar: "Você está feliz?". Ao que lhe disse: "Sim, e muito!". Em seguida, ela deu a sua benção final: "Então, eu também estou e é por uma boa causa".

É assim que quero me recordar da mestra. É essa a melhor lição deixada por Dona Cléo. São muito apropriadas as palavras da Profa. Dra. Margarida Alves Ferreira (sua primeira orientanda na UFRJ e esta também professora na Faculdade de Letras), quando, na saudação proferida nas celebrações dos 50 anos de magistério de Cleonice Berardineeli na UFRJ, em 1994, relembrou a expressão de Fernão Lopes sobre Nun'Álvares: "Clara em sua geração e nas outras que se seguiram é a profa. Cleonice Berardinelli" (Cleonice. Clara em sua geração, 1995, p. 17).

Nós, professores, pesquisadores, alunos e interessados na literatura portuguesa, devemos-lhe todas as homenagens. Ainda assim, percebemos que o nosso preito parece estar muito próximo da constatação de Camões, poeta que ela tanto amava:

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
(Poesia lírica, 1988, p. 88).

A ABRAPLIP transmite os seus sinceros sentimentos à família e aos amigos da eterna mestra.

Bem haja, Dona Cléo. Obrigado pela sua presença e pelas eternas lições.

São Carlos, 01 de fevereiro de 2023.

Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim
Professor Titular do Departamento de Letras da UFSCar
Presidente da ABRAPLIP – Gestão 2022-2023

ALGUNS TESTEMUNHOS E HOMENAGENS:

CLEONICE BERARDINELLI 28 de Agosto de 1916 - 31 de Janeiro de 2023

Senhora, Aula Magna da Literatura Portuguesa,
Agora, Você, Cleonice, bem claro nos ensina,
Aqui, onde o Natal mal se acaba em Carnaval que já começa,
A viver a bem-vinda passagem das horas em sua dina companhia divina.

Rio de Janeiro, lisblon, 31 de Janeiro-1º de Fevereiro de 2023

Jorge Fernandes da Silveira
Professor Titular e Emérito da Faculdade de Letras da UFRJ

Partiu Cleonice Berardinelli, a "nossa" Cleonice, Dona Cleo. De todas as manifestações de apreço e respeito com que o mundo académico a distinguia, o carinho, aqui expresso na palavra "nossa", talvez fosse o que mais lhe agradava.

Era, com toda a justiça, Presidente Honorária da nossa Associação Internacional de Lusitanistas. Era — e continua a ser — a mais prestigiada das estudiosas das literaturas e culturas de língua portuguesa. Figura de referência em todo o mundo académico, onde quer que se pensasse a língua portuguesa e as literaturas e culturas que nela se exprimem, a sua partida deixa-nos mais pobres.

Neste momento em que nos deixa, depois de tantas décadas dedicadas à nobre missão de ensinar, vergamo-nos respeitosamente diante da sua memória em sentida homenagem e expressamos o nosso pesar à sua família e às suas discípulas e seus discípulos (essa outra família) e dizemos-lhe, em nome de todas e todos nós: obrigado, Cleonice Berardinelli, obrigado, professora, obrigado, Dona Cleo, por tudo quanto nos legou.

Carlos Ascenso André
Presidente da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL)

D. Cleo no assento etéreo

Em 1971, mal acabara de entrar na Faculdade, soube de um curso de extensão sobre Fernando Pessoa que Cleonice Berardinelli iria ministrar, Lá fui eu inscrever-me, preenchendo aquele nome feminino, até então vago, com corpo, voz, simpatia, saber e inteligência cativantes. Um fascínio, que hoje sei ser semelhante àquele que Eça de Queirós sentiu ao ouvir Antero de Quental pela primeira vez: "também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida". Fascínio que também inoculou o grande grupo de professores de literatura portuguesa que ela reuniu à sua volta, talvez o maior do planeta.

Desde que ingressei na Pós-Graduação, em 1975, não mais deixei de estar bem próxima a ela, já então eleita minha "guru", minha "ídola", minha orientadora do Mestrado e do Doutorado. No 2º semestre de 1976 convidou-me a lecionar uma disciplina de Literatura Portuguesa – gesto inaugural da minha carreira de docente universitária na UFRJ, que, durante 30 anos, tentando seguir seu exemplo, procurei honrar.

Desde então, foram muitas as "aventuras" conjuntas: organização de eventos e de publicações, viagens, projetos variados… Abertura de portas e de portos.

Apraz-me lembrar que pude retribuir um pouco do tanto que dela recebi ao encabeçar algumas das várias homenagens que, muito justamente, lhe foram prestadas – quer por ser a profissional exemplar, formadora de várias gerações, quer por ser a pessoa rara, cativante, generosa, capaz de despertar admiração-paixão unânime. Neste sentido, não escondo meu orgulho de lhe ter ofertado o livro Genuína Fazendeira, que, em 2016, organizei para marcar seu centenário de nascimento, reunindo, em primorosa edição da Bazar do Tempo, 100 textos em seu louvor, assinados por nomes de prestígio entre escritores, colegas e amigos, nacionais e internacionais.

D. Cleo, que sempre fora clara em sua geração como a estrela da manhã, adentra agora aquela esfera translúcida da "Máquina do mundo", habitada pelos "divos" Camões, Pessoa, Bandeira, Drummond, que a acolhem em poesia e lhe agradecem efusivamente a bela extensão de vida, cá na terra, que ela lhes deu em suas aulas, suas palestras, seus textos.

Gilda Santos
Professora Associada da Faculdade de Letras da UFRJ
Diretora V.P. Cultural e do Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura/RJ

Viveu muito, viveu plenamente.

Sua memória impressionava tal a riqueza de detalhes quando nos contava seus encontros com escritores. Para nós, ela já era eterna e brincávamos que Dona Cleo também havia conversado com Camões! Deixou-nos tantas lembranças boas, felizes. Era nossa Mestra, tão reconhecida no mundo, mas sempre simples, serena e disposta a aprender sobre os escritores mais novos.

Vivas à nossa para sempre Professora Cleonice Berardinelli, que passou agora a conversar, em outro céu, com Gil Vicente, Camões, Pessoa, Bandeira, Drummond e tantos outros autores que amava.

Será alegremente recebida!

Ida Maria Ferreira Alves
Professora Titular do Instituto de Letras da UFF
1ª Tesoureira da ABRAPLIP – Gestão 2004-2005

Eu conto, porque é preciso guardar a memória.

Eram vésperas do Natal de 1979, ano em que comecei a cursar o Mestrado em Literatura Portuguesa, na Faculdade de Letras da UFRJ. Atendi ao chamado do telefone. Do outro lado, a voz de Dona Cleonice (naquele momento não a chamava de D. Cléo). Dela me vinha uma notícia: tinha sugerido o meu nome para professora colaboradora na faculdade. Ao mesmo tempo, me pedia desculpas, por ter feito a sugestão sem que eu a autorizasse. Generosidade e ética nunca lhe faltaram. Agradeci o prêmio e – é claro! – aceitei. Hoje, depois de 42 anos, sou Professora Titular da Faculdade de Letras. A Dona Cléo devo muito do que hoje sou. Agora ela nos deixa, para habitar a morada eterna. A ela agradeço e guardo a sua voz "manselinha", como certa vez a adjetivou Margarida Alves Ferreira, a sua "primogênita", para sempre.

É inevitável a passagem das horas, mas o que dela ficou, a lembrança das aulas magníficas, a delicadeza do seu gesto, a amizade que nos aproximou, a defesa inconteste da Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras, tudo isso e o que mais houver, a passagem das horas não nos há de tirar. E nós que a amamos, estejamos deste ou do outro lado do Atlântico, agradecemos a sua presença, por tantos anos de convívio. Bem haja, Dona Cléo. Até um dia.

Luci Ruas
Professora Titular da Faculdade de Letras da UFRJ
Regente da Cátedra Jorge de Sena/UFRJ

A fada e seu segredo

Depois do 25 de Abril, os escritores portugueses tiveram oportunidade de virem, em embaixadas, visitar as universidades brasileiras - o que causou um certo alvoroço entre nós, professores e estudiosos dessa literatura. De todos, quem os conhecia melhor e de muito antes, era, naturalmente, a nossa querida Dona Cleo. E, em alguns passos dessa peregrinação pelo Brasil, puderam eles contar mesmo com a sua presença em muitos dos eventos.

Já não sei lembrar quando e onde se passou o que agora narro, mas teria sido nessa ocasião. Estávamos uns poucos reunidos na casa de um professor (em Sampa ou no Rio?) para um jantar com alguns desses senhores, e, lá pelas tantas, a Cleonice me segredou que precisava ter uma palavrinha comigo. Fomos as duas, discretamente, para o escritório da casa, e lá ela me adiantou que vinha lendo os meus escritos sobre o Herberto, sobre cuja poética eu preparava o meu doutoramento. Fiquei espantada porque não podia sequer sonhar em ter, para mim, uma leitora como ela, e, para o meu arrebatamento total, Cleonice passou, de imediato, a comentar o meu trabalho, como se o tivesse acabado de ler!

Não concordava com um ponto e deteve-se ali sobre isso. Levantou, inclusive, uma palavra mal-empregada, questionou-a e me vi obrigada a lhe dar toda a razão, aceitando – e de muito bom grado! - as sugestões que ela me fazia.

O fato é que senti, naquele momento, que adquiríamos uma interlocução insuspeitada e, para mim, extremamente privilegiada. Oh, quem me dera que isso ocorresse com mais assiduidade e que ela pudesse me coorientar, ou mesmo, vagamente nos carteássemos sobre essas preocupações que me apareciam no transcorrer dessas pesquisas... Afinal, naquela altura, estava na Unicamp e a Cleonice na sua sede e matriz: Rio de Janeiro; e não havia nem cels e nem zaps. E lhe fiquei agradecidíssima – para sempre!

Vai daí que, dias depois, em casa, buscando o trecho apontado por ela para reabilitá-lo a partir da nossa conversa, não o encontro em nada do que havia redigido. Não, não era possível! Eu sabia tê-lo escrito – tinha mesmo certeza! - mas não o localizava de modo algum. Teria eu sonhado com o que se passara ou perdera a noção da realidade depois daquele vinho português servido tão a gosto pelo nosso anfitrião? Meu Deus, então, como é que a Cleonice podia ler os meus pensamentos e podia até discuti-los comigo?! Além de visionária, seria ela, ainda, uma espécie de Fada Madrinha que sem querer viera me aconselhar?! E ali fiquei, por um tempo, quebrando a cabeça sem dar por nada, sem encontrar a mínima pista.

E no passar dos dias, de repente – claro que não mais que de repente! – me lembrei de procurar os meus relatórios de bolsista, aqueles absolutamente inéditos e entregues há pouco tempo! E não é que dou com o nó das observações da Cleonice?! Ah, essa não, essa era demais! Então era ela a consultora dos meus trabalhos?! Como é que nunca eu me apercebera de nada, nunca?!

Já se vê que a confidencialidade obrigatória tinha sido mantida rigorosamente comme il faut, mas os olhos da Mestra e o seu mister de ensinar – e de tomar o partido do aprendiz! – tinham transbordado, inconscientemente, num gesto de extrema generosidade e de benevolência para com esta humilde aluna. Tal como era, missionária da literatura, Cleonice não poderia evitar de atentar com um equívoco que, se duradouro, ia fazer descambar uma pesquisa que, pelos vistos, ela prezava muito.

Por outro lado, muito provavelmente, como - eu adivinhava! – passara anos e anos lendo os meus relatórios, era de se supor que eu já teria publicado o texto, visto que eu jamais poderia chegar a desconfiar que ela, essa Mestra que eu tanto requeria como minha de nascença, já fazia parte, há tempos, desse ofício...

Nunca lhe disse o que tinha descoberto, e muito menos ela me fizera saber da bênção que, silenciosamente, tinha exercido sobre os meus escritos durante anos e anos de estudos. E olhe que a queridíssima Cleonice alcançou 106 primaveras! Tivera tempo de sobra para baixinho, ao meu ouvido, me confessar essa tarefa sagrada que, eu – irreverente! - e tão somente para exaltá-la ao mais alto cume da discrição e do altruísmo e da compaixão pela ignorância, acabo, só agora, por revelar. Com amor, com ternura e apaixonadamente!

Cleonice querida, desculpe esta explosão de inconveniência que vem do mais fundo do meu coração, apertado, por tanto tempo, de não manifestar a ninguém essa imensa dádiva com que me presentou. Só agora me autorizo a lhe murmurar que sempre soube do seu segredo e que lhe sou extremamente grata por ter-me guiado como um Anjo-da-Guarda imperceptível, mas luminoso na sua caridade. A sua sempre

Maria Lúcia Dal Farra
Professora Titular da UFS

Faleceu ontem, no Rio de Janeiro, aos 106 anos, a Professora Cleonice Berardinelli (1916-2023). Muitos membros do DLLC, e não apenas da Secção de Português, se cruzaram com ela ao longo das suas carreiras, tendo podido testemunhar o seu saber, simpatia e dedicação à causa da Literatura Portuguesa. Especialista em Camões e Pessoa, a Professora Cleonice Berardinelli, que era também Professora honoris causa da nossa universidade desde 2013 [https://youtu.be/3MtvtyPZ2DA], desempenhou um papel do maior relevo na formação de várias gerações de especialistas em literatura portuguesa no Brasil, a partir da sua universidade, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas também da PUC da mesma cidade. Enquanto a saúde lhe permitiu não apenas trabalhou sobre os seus autores de sempre, como acompanhou a vida académica, fazendo e assistindo a palestras e conferências, quer na universidade, quer no Real Gabinete Português do Rio de Janeiro, como eu mesmo pude testemunhar há alguns anos quando lá falei sobre o Livro do Desassossego e tive o privilégio de contar com ela entre o público presente.

Uma Colega brasileira, a quem apresentei a noite passada os meus sentimentos, por saber do vínculo que a unia, e a muitos/as outros/as, ao magistério da Professora Berardinelli, enviou-me a seguinte mensagem: "Viveu muito, viveu bem, fica para sempre em muitos de nós". É o melhor epitáfio que se poderia desejar para a Professora Cleonice Berardinelli, e para quem quer que fosse. Enquanto membro da Secção de Português, mas também como coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros e Diretor deste Departamento, quero manifestar todo o meu reconhecimento pelo trabalho ímpar da Professora Cleonice Berardinelli no estudo e divulgação da literatura portuguesa no Brasil, bem patente na vasta comunidade de docentes desta área que, nesse grande país, de algum modo são devedores do seu magistério. Estou certo de que estou acompanhado por todo o Departamento neste reconhecimento.

Com as minhas saudações académicas,

Osvaldo Manuel Silvestre
Diretor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas
Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra

Cleonice Berardinelli, D. Cléo, como carinhosamente a chamávamos, integrou a geração dos grandes pioneiros dos estudos portugueses no Brasil. Fundou, em 1966, em Salvador, ao lado de Antônio Soares Amora, Carlos d'Alge, Jordão Emerenciano, Leodegário Azevedo Filho, Massaud Moisés, Naief Sáfady, Segismundo Spina e Thiers Martins Moreira, a Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa, a nossa ABRAPLIP, que ela tanto amava.

Sempre me impressionou a sua curiosidade intelectual e a enorme atenção com os colegas e ex-alunos. Vi-a, vezes sem conta, em sessões quase ao raiar do dia ou logo depois do almoço, firme e forte, se desdobrando para ouvir e conhecer as pesquisas de gerações e gerações de estudiosos que procuravam levar à frente a chama da literatura portuguesa no Brasil. Quando o assunto era Sá de Miranda, Gil Vicente, Camões, Garrett, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós ou Fernando Pessoa, o seu testemunho era invariavelmente o da paixão: paixão pela literatura, paixão pelo conhecimento da literatura, paixão pelo ensino da literatura portuguesa.

Obrigado, D. Cléo, por tudo!

Sérgio Nazar David
Professor Titular do Instituto de Letras da UERJ
Presidente da ABRAPLIP – Gestão 2020-2021

Para Cleonice, sempre presente

Há muito que lembrar da vida de D. Cleonice Berardinelli (D. Cleo, para os mais próximos) e de sua vasta produção acadêmica, dedicada ao estudo de escritores portugueses de larga leitura no Brasil, como Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Luís de Camões e Gil Vicente, um grupo ao qual é necessário acrescentar Antero de Quental, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Namora e vários outros. Todos lidos por ela com argúcia e atenção, a partir de uma inteligência ímpar. Quero, todavia, recuperar aqui a memória da professora magistral que foi, formando várias gerações de pesquisadores – os filhos, netos e bisnetos, como gostava de dizer – que hoje atuam em universidades de todo o país.

A experiência de conviver com ela em uma sala de aula é algo que levarei para sempre comigo: seu olhar vivaz ao falar sobre os textos literários; o maravilhoso e encantador tom de voz ao ler poemas; a dicção perfeita e, principalmente, sua disponibilidade para nos ouvir e partilhar o conhecimento.

Lembro-me bem de um dia, durante o curso de doutorado, quando, ao comentar com ela que me angustiava por não ter lido ainda tudo que julgava precisar, ouvi como resposta que esse momento nunca chegaria, que ela também, a cada dia, sentia a necessidade de ler mais e de novo. Foi sempre uma incansável leitora, foi sempre alguém em busca de encontrar nas letras a magia da escrita que se tece como texto. É nesse lugar, o do afeto, que merece ser guardada.

Para ABRAPLIP, não poderia deixar de destacar, foi sempre uma presença fundamental, não apenas como membro fundador e presidente de uma gestão irretocável, mas como uma das vozes potentes que mobilizou a Associação e seus associados. Que nossa memória seja forte e ágil, como foi a dela, para mantê-la sempre presente entre nós.

Silvio Renato Jorge, em 31 de janeiro de 2023.
Professor Associado do Instituto de Letras da UFF.
Presidente da ABRAPLIP – Gestão 2004-2005

D. Cleo, a eterna Aula Magna

Na década de 1970, no saudoso prédio da Avenida Chile, comecei meu curso de Graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, convivendo diariamente com grandes nomes do ensino e pesquisa na área das Literaturas. Inicialmente encantada pela Língua e Literatura gregas e pela Linguística, fui, ao longo do trajeto, arrebatada por uma equipe que se destacava pela coesão, pela competência e, sobretudo, pela admiração e lealdade a uma figura maior que liderava jovens e brilhantes pesquisadores: Cleonice Berardinelli, a D. Cleo, como carinhosamente a chamavam. Apaixonei-me.

Sob os ecos de sua magia, contudo não fui conhecer a experiência de ser sua aluna senão na Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica. Uma experiência única, rara, adentrar os meandros da monumental obra do Camões lírico, suas fontes e reverberações, guiada pelo conhecimento invulgar de D. Cleo. A mestra mater, a grande leitora de Camões e Fernando Pessoa, transmitia com generosidade a sua erudição de exegeta, levava os alunos a partilhar uma profundidade que só os leitores íntimos dos grandes clássicos poderiam alcançar.

Tive em 1979 a honra de ser examinada por ela no júri de Mestrado, com dissertação sobre poeta cabo-verdiano raramente estudado, Daniel Filipe, contando com suas sugestões sempre pertinentes para um trabalho seminal, que teria repercussões imensas em minha carreira.

Orientada por seu olhar arguto e pela sua coragem de ousar novos voos, partilhamos nos anos 1980 a pesquisa de catorze obras de um poeta português contemporâneo vivo, Gastão Cruz, produzindo quatrocentas e tantas páginas que ela lia com avidez e oportunas intervenções. Paciente, generosa, entusiástica mestra: evoco reuniões em seu aconchegante escritório, a ouvir o tenor Josep Carreras no auge de sua arte... cenas indeléveis em minha memória acadêmica e afetiva.

Em sua saída da PUC/Rio para assumir outros voos, indicou-me para sua vaga como professora da Pós-graduação em Literaturas de Língua Portuguesa, no final dos anos 1980, arremesso decisivo desta sempre sua aluna para a trajetória acadêmica que tenho trilhado, à luz do seu exemplo de seriedade e dignidade profissionais. E, especialmente, de respeito à individualidade e às escolhas daqueles que tocou com suas mãos de Midas.

Obrigada por tudo, D. Cleo! Siga na luz! Vá espargir o seu perfume, a sua doçura, o seu entusiasmo e a sua generosidade no cosmos, que certamente estava à espera de seu abraço.

Simone Caputo Gomes
Professora Sênior da USP
Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras